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Quem são os cearenses? O retrato de um povo através da gastronomia

Populares e especialistas discorrem acerca da gastronomia como forma de expressão cultural do povo cearense de acordo com seus aspectos advindos do mar, do sertão e da serra.

Por: Adelia Wirtzbiki, Evellyn Gislene, Isadora Azevedo, Julia de Oliveira e Paulo Roberto Maciel

A comida tradicional do Mercado São Sebastião é apreciada por clientes fiéis / Adelia Wirtzbiki

A gastronomia do estado do Ceará é carregada de riqueza e diversidade, construída a partir de uma história de longos séculos de lutas e conquistas. As comidas simples, presentes nos pratos do cotidiano do povo e em restaurantes espalhados por todo o estado, são símbolos da cultura cearense. São esses símbolos que permitem que o ato de comer um prato de panelada, camarão e peixe, ou café com cuscuz relembrem a história de um povo e revivam a marca de uma população inteira.

Pensar a comida é pensar em sua significação no espaço e na história não só de quem a preparou, mas de um emaranhado de pessoas que vieram antes dela. Na comida que vem do mar, do sertão e da serra cearense, encontra-se um oceano de cultura, diversidade, identidade e história da população. “Escrever, pensar, refletir, debater sobre comida, sobre culinária, é com certeza fazer, resgatar e ressignificar a História”, aponta o professor Bernardo Lima, formado em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Essa história data do século XVII, advindas de uma colonização tardia. O professor Bernardo explica que a capitania hereditária que seria o Ceará hoje, nem mesmo foi ocupada pelo capitão-donatário responsável. A ocupação inicia com a chegada dos holandeses no Nordeste e com uma série de expedições militares pelo território.

Por conta das questões geográficas, o Ceará não tinha um cultivo expressivo de cana-de-açúcar. A opção que gerava lucro era a pecuária. “Nossa pecuária obrigatoriamente tem que ser extensiva, ou seja, o gado tem que ser criado mais solto por questões geográficas. Então isso vai modificar completamente a etnografia da formação da nossa população”, adiciona Bernardo. A capitania não via sentido na compra de escravos, já que o gado ficava solto. A miscigenação dessa população ocorre entre portugueses e indígenas.


A variedade de temperos regionais atrai pessoas de todos os lugares / Adelia Wirtzbiki

A gastronomia do estado sentirá a influência de sua história, etnografia e clima. A comida feita no Ceará, como aponta o professor de gastronomia da Universidade Federal do Ceará (UFC), José Arimatea Barros Bezerra, caracteriza-se pela produção básica agrícola, baseada no milho e no feijão, pela carne seca, decorrente da pecuária, e pela farinha, vinda dos povos originários. “São influências múltiplas. Influência indígena, influência em menor escala das pessoas escravizadas, influência portuguesa”, explica Arimatea sobre a construção dessa gastronomia.

Essa base simples carregada de uma mistura etnográfica tem forte presença no interior do estado e, posteriormente, passa a ocupar a faixa litorânea. A capital cearense consegue representar bem essa diversidade culinária que o estado possui. É possível encontrar desde cafeterias que servem o café produzido no Maciço de Baturité, aos peixes e frutos do mar vendidos na própria orla de Fortaleza ou ainda as tradicionais buchada e panelada servidas na cidade.

As comidas locais permanecem presentes e se misturam com a inclusão de novos pratos que chegam vindos de outras regiões. A diversidade presente no estado advém tanto do tradicional quanto das chegadas recentes.

CULINÁRIA MARÍTIMA

Os frutos do mar são o produto do árduo trabalho dos pescadores cearenses / Adelia Wirtzbiki

A nossa experiência gastronômica começa pelo litoral com comidas que representam uma culinária viva e a coragem de quem enfrenta o mar todos os dias para pescar e precisa de muito carisma para vender. O Mercado dos Peixes foi inaugurado nos anos 60 para facilitar o comércio de peixes e frutos do mar pelas comunidades pesqueiras que existiam na região da Beira Mar na época.

O Mercado foi reformado em 2016, adaptando o tradicional ponto de vendas ao novo rosto do bairro, mas a tradição permanece. Os produtos servidos vêm de pescadores assentados na região há gerações e os atuais donos dos quiosques herdaram os pontos de venda de seus pais e avós.

Houve uma união entre os pescadores, os vendedores e as barracas de praia que preparam os produtos comprados no local do jeito que o cliente manda. No mercado, há vários modos de preparo, sempre contando com alguma variação clássica ou moderna, principalmente nas opções como caranguejos, siris, camarões, ostras e lagostas.

CULINÁRIA DO SERTÃO


A panelada é uma amostra da criatividade da culinária cearense / Paulo Roberto Maciel

A comida do sertão cearense foi desenvolvida em um ambiente climático extremo, fazendo com que seus ingredientes precisassem ser resistentes à secura e à quentura do sertão. Muitas carnes são feitas a partir da conserva com sal. O sertão nordestino é o lugar ideal para essa produção, devido à baixa umidade do ar. É uma comida que representa a capacidade de adaptação do seu povo e que possui não só influências climáticas, mas também dos povos que pelo sertão já passaram.

Distante de praias e dos destinos turísticos mais procurados, o sertão se destaca por suas paisagens desérticas e sua culinária de sabores fortes e acentuados. Quem não reconhece o cheiro de uma panelada a milhas de distância só pode nunca ter comido.

A panelada é um prato tradicional do estado que surgiu como recurso emergencial em um período de escassez alimentar e se mantém até hoje sendo objeto de curiosidade e encanto da culinária cearense. O prato pode ser encontrado em diversos lugares de Fortaleza, mas o mercado São Sebastião detém o status de mais tradicional por sua história que data de 1937. De acordo com Ana Luiza Souza, de 38 anos, e seu esposo Eneas Costa, de 42, proprietários do Panelada VIP, restaurante do mercado, foi necessário muito esforço e amor para o aperfeiçoamento da receita.

Além da panelada, podemos encontrar uma diversidade de pratos cearenses como a língua de boi e a buchada de carneiro. Antônio Serafim da Silva, de 47 anos, mais conhecido como “Nem”, proprietário do Bar do Nem, também localizado no mercado, é especialista em língua de boi e ganhou o concurso “Comida di Buteco” pela segunda vez com um croquete de língua chamado “Zabumba e Boi Bumbá”.

CULINÁRIA DA SERRA

Grãos de café do Maciço de Baturité podem ser encontrados na capital / Isadora Azevedo

A mais de 800 metros do nível do mar, o Maciço de Baturité se destaca na produção de café no estado, com início do cultivo ainda no século XIX em cidades como Guaramiranga, Pacoti e Baturité. Na Rota Verde do Café, tradicional passeio da região, é possível ver locais onde esse café é produzido.

O café do maciço se destaca por sua qualidade, com grãos de sua maioria arábicos e sua secagem sombreada, técnica que faz com que o café não mofe e tenha uma qualidade superior. Mas não é necessário se deslocar até o Maciço para experimentar o café. Em Fortaleza, é possível encontrar várias cafeterias que vendem os grãos produzidos na serra, como a Uritu Cafés Especiais que trabalha com uma ampla variedade de grãos e torras.

Para quem busca tomar um cafezinho já pronto, o Café Santa Clara fica localizado na praça Luíza Távora e oferece opções de bebidas quentes, além de comidas tradicionais cearenses para acompanhar, como o cuscuz e a tapioca.

GASTRONOMIA DE RESISTÊNCIA

Existe muito da história de um povo em seus pratos mais famosos, desde como trabalhar a terra até a cultura dos temperos, do preparo e do ato de servir a comida. Mas a história do Ceará também está escrita em longos períodos de escassez e em uma construção histórica que marginalizou o estado. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) aponta que mais de um quarto da população cearense passou fome em 2022.

As questões econômicas e geográficas sempre pautaram o que os cearenses podem comer. A história dos pratos está ligada ao povo. Dos pescadores com rotinas de trabalho pesadas desde a madrugada, aos cafeicultores que vendem os melhores grãos e bebem café preto torrado e aos sertanejos que ainda dependem da carne de sol quando não há para onde correr. O povo cearense guarda para si as suas lutas e exporta para o mundo uma culinária gourmet.

É inegável, no entanto, que os cearenses retiram muito do seu sustento e sua força das comidas que carregam gerações. Podem não ser os pratos que movimentam páginas de Instagram, mas o cuscuz, o café, a panelada, os frutos do mar e toda a variedade local nasceram do povo que vive, luta e se mantém, acima de tudo, cearense.