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O que é preciso para reconstruir tudo?

Dniel: um nome fictício de uma história tão real quanto poderia ser

Mãos cansadas seguram um telefone e dois livros marcados pelo uso. Seu corpo veste uma blusa frouxa e uma bermuda. Seus olhos gritam dores inaudíveis que embargam a voz de quem as tenta escutar. O que é preciso para reconstruir tudo e conquistar de volta o que foi seu um dia?

Escuto a voz cansada de um homem de 31 anos que conta a sua história de vida, repetida em outras existências únicas que convergem entre si: o que une pessoas em situação de rua? Para o mundo, são indivíduos esquecidos pelo sentimento de humanidade. Se é que há algum sentimento.

Daniel é um nome fictício de uma história tão real quanto poderia ser. Ele vive na rua desde o dia 4 de janeiro de 2023 e atualmente é usuário de drogas. De acordo com ele, sua preferência é pelo crack. E há mais de um mês, seu uso é compulsivo e diário.

Mas Daniel também é um homem espirituoso que fala sobre religião. É agnóstico e reforça dizendo que não é ateu. Ele admira o candomblé e o cristianismo. Foi um estudante de psicologia por aproximadamente 3 anos e meio e até mesmo brinca que ele é quem faz as sessões de terapia das amigas. Daniel fala sobre sexualidade, instituições políticas, dificuldades vivenciadas por ele e outras pessoas LGBT’s na rua e me explica sobre várias coisas que eu não sei. Ele gosta de ler, principalmente livros do gênero terror — são esses os que carrega com as mãos.

Sua história me arranha a garganta. E eu me pergunto novamente: o que é preciso para reconstruir tudo e conquistar de volta o que foi seu um dia? Uma linha tênue separa uma vida passada da realidade de hoje. Daniel quer mudar. Ele diz: “eu venho falando para algumas pessoas, eu tô saturado”.

Mas ele também explica que é difícil. Como não poderia ser? As crises de abstinências sem o apoio de medicamentos parecem situações impossíveis para ele. Além disso, algumas clínicas de reabilitação assumem posições político-ideológicas, preconceituosas, e até violentas para pessoas LGBT’s. Sua voz carrega um misto de ressentimento, aceitação e indignação. Uma dualidade vivida na fala, na mente, na vida.

Uma oposição entre a facilidade de ir para a rua e a dificuldade de sair. Uma dicotomia entre um dia estar empregado, noivo; e em outro, acompanhado pelo sentimento de não se ter nada em que se agarrar. Isso também faz parte da história de Daniel. Uma vida longa quase forçadamente inserida em tão pouco tempo. 31 anos. 321 dias de lamentos invisíveis.

Meu coração acelera e eu engulo seco. Eu não sei o que é preciso para reconstruir tudo. Mas eu espero que o Daniel descubra. E que sua potência, força, inteligência e coragem o acompanhem no caminho.